domingo, 12 de setembro de 2010

A HISTÓRIA DE MARIA DENTÃO

Não sabia o seu verdadeiro nome, se é que eu tivera um algum dia. Sempre fora conhecida por Maria Dentão, apelido dado devido aos dentes grandes separados e um pouco saltados. Magra, franzina, cabelo curto, pixain e sarará, sempre vivera nas ruas. A cidade grande a engolira como engolira tantas e tantas da sua condição. Nunca tivera sonhos, desejos ou aspirações. Desejos? Não. O que tinha era vontade. Vontade de comer, vontade de beber e outras tão próprias de seres vivos. Na verdade, voltando atrás, ela tinha um desejo, se é que aquilo era um desejo. Estava mais para um sonho impossível de ser realizado. Possível sim, mas só para os outros: ter uma boneca. Era capaz de passar horas perto das vitrines, principalmente quando se aproximava o feriado dedicado ás crianças, quando as lojas se enchiam de bonecas de todos os tipos e tamanhos. Enlevada, ficava olhando sem sequer desejar, porque não sabia o que era desejo, apenas olhava, pensando ás vezes, qual seria a reação das crianças que, seguras ás mães, levavam um maravilhoso pacote.
A turminha de trombadinhas da qual fazia parte, zombava dela.

- Sai daí, Maria Dentão. Tu queres roubar a boneca? Olha a polícia. Ô, menina besta, meu Deus, parece que é leza, só fala e só quer ver essas besteiras de boneca. Deixa a polícia te pegar, bichinha.

Mas nada podia apagar o seu indescritível sentimento pelas bonecas, pensava nelas dia e noite.
Uma noite fria de chuva, trovão forte, chuva grossa, todos se recolheram a um terreno baldio onde havia restos de telha que podiam abriga-los. Maria ficou um pouco mais longe do telhado. A chuva aumentou. De repente sentiu uma mão enorme a tapar-lhe a boca e abrir-lhe as perninhas magras. Tentou se afastar mas sentiu uma dor indescritível percorre-la toda, enquanto uma voz bêbada sussurrou-lhe ao ouvido:

- Cala boca, quenga. Se não se calar vai doer mais. - Disse a voz ao mesmo tempo em que lhe dava um enorme beliscão, arranhando-lhe o rosto com as unhas grandes.

Passados alguns instantes, a voz se afastou deixando-a sozinha tremendo com uma dor enorme. Noite seguinte a mesma coisa, e outra e mais outra. Não podia mais pensar naquilo, resolveu deixar o bando e se esconder noutro lugar. A risada era geral quando se encontravam no dia seguinte.

- Maria arranjou um macho, ó como a roupa dela tá suja.

Meses depois, a zombaria mudou de tom:

- Maria arranjou um macho, ó como ela tá buchuda.

E Maria seguia sem entender nada do que tinha lhe acontecido e do que estava acontecendo, apenas sorrindo o seu sorriso um pouco tolo e nunca deixando de olhar as queridas bonecas. Não sabia a que atribuir a barriga grande e o inchaço nas pernas. Na verdade, tudo o que lhe interessava ainda continuava ali, o sonho das bonecas.

Uma noite, acordou com uma dor horrível. Parecia que seu corpo estava sendo rasgado a facadas. Contorcia-se e urrava de dor mas seus gritos não eram ouvidos na noite alta sem ninguém na rua. Horas passaram-se num sofrimento indescritível, até que finalmente, alguma coisa pareceu sair de dentro dela de repente. Maria pegou para ver o que era e seu rostinho feio se iluminou com um imenso sorriso. Não podia acreditar, mas ali estava tudo o que nunca imaginara poder ter. Magrinha, sem vestido bonito e sem olho azul, mas era uma boneca. Ela tinha finalmente sua boneca nos braços, e chorava, tinha uma boneca de verdade nos braços e que chorava. Agarrou docemente a criaturinha que emitia pálidos vagidos e acarinhou-a com ternura, sem prestar atenção ao sangue que abundante lhe escorria entre as pernas e ao frio que sentia. Importante era a boneca, que apertou contra o coração. Depois de algum tempo, a criaturinha silenciou. Maria sentiu aumentar p frio, tão forte que chega parou de sentir o corpo. Sentiu sono e dormiu, sempre abraçada á bonequinha, também fria quanto ela.

Quando a manhã despertou sobre a cidade pulsante, o sol ardente do verão iluminou o seu corpo pálido e enregelado. Maria Dentão finalmente ganhara sua boneca.

Maria do Mundo.

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